CONCHAS E CASCAS PARA COLETAR BURACOS
É dia de greve. No quintal, brinquedos abandonados repousam entreroupas e toalhas estendidas ao sol. Fazendo-lhes sombra, papéistranslúcidos, suspensos e marcados por veios, deixam entrever fissuras –reminiscências das cascas tênues das árvores. À espera, pilhas de louçase acumulam como os sabonetes ressequidos, a equilibrar-se sobre as clavículas. Ninguém sabe seus segredos: aspirantes às pérolas, vivemnas conchas desviadas, sujas de espuma.
A céu aberto, dispersam-se por campos e florestas, confundindo-se comos gestos do trabalho doméstico. Partilham território com varas, lanças,espadas – instrumentos de ferir, espetar, subjugar – e, nas fábricas, comoutros pontiagudos: colam, costuram, refilam. Perguntam então: comoromper tais ordens do atrito? Por que as bolsas, recipientes de coleta earmazenamento, não foram tratadas como monumentos²?
Abrem a boca em silêncio, guardando dentes como quem oculta armas.Sopro após sopro, desencadeiam ventos, raios e furacões, capazes dedesmanchar o gesto bélico e, ao fazê-lo, abrir espaço para outra memória:aquela que restitui ao papel o tronco, arranca as segundas peles e as converte em túnicas de envelhecimento sabido. Recusam as armadilhas da suspensão, conferindo-lhes vigor ao desequilíbrio, à queda, à repartição.
Não há mais muros para heróis obstruírem, nem estátuas nas praças para contornar, tampouco vozes capazes de reter os signos dos vivos.As portadoras das fábulas são todas: aquelas que desejam armazenar, segurar, preservar. Foram elas que escreveram seus nomes e os guardaram em gavetas – com bilhetes, receitas e magias – para um dia serem lidos, letra por letra, em gestos de admiração pelas próximas. Foram elas também que cavaram encontros assim, séculos adiante,semeados e colhidos por mãos que sempre souberam – e saberão –instrumentalizar abrigos e afagos. Não ergueram colunas nem estátuas:retiraram, cotidianamente, com conchas e cascas, os buracos.¹
Marina Schiesari
Texto elaborado em diálogo estilístico com As Guerrilheiras, de Monique Wittig, cuja escritainspira a tessitura e o ritmo deste fragmento.² Referência direta à noção de “Teoria da Bolsa da Ficção”, formulada por Ursula K. Le Guin,mobilizada aqui como contraponto às formas monumentais.

